Em 2021, a mordaça finalmente começou a ser aplicada. A ordem, entretanto, veio do outro lado da Praça dos Três Poderes
Ao longo de mais de uma década de governos do PT, a sociedade brasileira conviveu com a ameaça constante de que, mais dia, menos dia, teria de engolir o fim da liberdade de imprensa. Tratava-se de uma pauta que surgiu em 2004, durante a gestão Lula, quando os ex-ministros Luiz Gushiken e José Dirceu tentaram criar um Conselho Federal de Jornalismo para “orientar, disciplinar e fiscalizar” a profissão, com punições estabelecidas em lei. A investida foi abortada pela descoberta do mensalão. Com a vitória de Dilma Rousseff seis anos depois, Franklin Martins tentou ressuscitá-la, em vão, com o nome de Controle Social da Mídia — em ambos os casos, pode chamar de censura que eles atendem. Eis que, em 2021, a mordaça finalmente começou a ser aplicada. A ordem, entretanto, veio do outro lado da Praça dos Três Poderes.
A perigosa escalada contra a liberdade de expressão no Brasil ganhou alicerces com a instalação do famigerado inquérito das fake news pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020. Na época, o então presidente da Corte, Antonio Dias Toffoli, convenceu seus colegas togados de que “a integridade e a honorabilidade” deles e de seus familiares estavam ameaçadas. Toffoli estava incomodado havia um ano, desde que uma reportagem da revista Crusoé o chamou pela alcunha de “o amigo do amigo do meu pai”, expondo as relações pouco republicanas que mantinha com a empreiteira Odebrecht quando exercia o cargo de advogado-geral da União. O relator indicado para arbitrar sobre o que é e quem estaria disparando notícias falsas na internet foi Alexandre de Moraes.
Foi como estrangular os canais que vivem do dinheiro que ganham na internet
Não é exagero afirmar que, com a criação desse monstrengo jurídico, sem escopo definido nem respaldo do Ministério Público, e muito menos crimes tipificados na legislação, o Supremo mirou um canhão assustador contra a sociedade livre. No guarda-chuva desse inquérito — que depois foi reetiquetado como “inquérito das milícias digitais” —, foram presos o jornalista Oswaldo Eustáquio, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) e o presidente do PTB, Roberto Jefferson. O crime: criticar a atuação dos ministros do Supremo.
Do STF também surgiram outras investidas recentes patrocinadas pelo seu puxadinho mais próximo, o Tribunal Superior Eleitoral, formado por integrantes da mesma Corte. Na última terça-feira, o corregedor do TSE, Luis Felipe Salomão, determinou que alguns canais de direita ou apoiadores do presidente Jair Bolsonaro fossem proibidos de monetizar — termo técnico usado pelas plataformas de redes sociais para pagar os proprietários por seus conteúdos conforme o número de visualizações. Na prática, foi como estrangular os canais que vivem do dinheiro que ganham na internet. Foram emparedados os perfis Te Atualizei, Terça Livre, Jornal da Cidade Online, Folha Política e Vlog do Lisboa.
Dessa lista, causou enorme repercussão a inclusão do bem-humorado Te Atualizei, conduzido pela mineira Bárbara Destefani, com mais de 1,3 milhão de inscritos. “Não sei por que estou sendo investigada”, disse. “Foi apontado pelo ministro que as pessoas se colocam como analistas políticos — e como se isso fosse crime. Não é o meu caso, nunca enganei ninguém nem me coloquei como grande filósofa contemporânea. Sou uma dona de casa que gosta de política, que arrumava a casa com o celular preso no sutiã ouvindo a TV Câmara e a TV Justiça. Achei que, se eu seguisse as regras, estava segura pela Constituição. Nunca fui sequer punida pelo YouTube.”
Mas, afinal, por que um tribunal que cuida de eleições — e só por isso já se configura uma jabuticaba brasileira — pode arbitrar sobre o assunto se não estamos nem próximos do início da campanha? “Não se trata de candidatos ou potenciais candidatos a eleições para envolver a Justiça Eleitoral. É uma decisão intrigante”, afirmou a deputada estadual e jurista Janaina Paschoal (PSL-SP). “É aceitável um tribunal que se entende vítima de ações dessas pessoas aplicar medidas restritivas contra elas? Eu considero que não.”
Para Dircêo Torrecillas Ramos, jurista e membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, a decisão do TSE é inconsistente. “Primeiro, porque é relativo e muito difícil dizer o que é fake news ou não”, afirmou. Segundo ele, a canetada configura censura indireta. “Ao propor a desmonetização desses veículos, o TSE está praticando o cerceamento da liberdade de expressão de jornalistas e daqueles que encontraram um meio de falar o que pensam e de ganhar dinheiro com isso.”
Um grupo de 230 advogados assinou nesta semana uma representação criminal contra Alexandre de Moraespor abuso de autoridade, especialmente na prisão de Roberto Jefferson. O grupo aponta um aspecto gritante no caso: como os ministros do STF podem ser vítimas, acusadores e juízes ao mesmo tempo? Mais: os recursos contra as decisões também serão analisados por eles — o que pode significar o fim da linha num processo.
A quem interessa a mordaça?
Não chega a causar estranheza a persistente patrulha do Judiciário aos canais que não se alinharam à oposição compulsiva ao governo Jair Bolsonaro. No caso dos ministros, sempre que a imprensa resolveu dar uma “enxadada”, algo apareceu contra eles — e nada pode ser pior do que viver debaixo de um telhado de vidro.
“Do jeito que está, o relatório do TSE acaba com uma mídia que hoje é mais forte do que a tradicional”, disse Torrecillas. Janaina Paschoal completa: “O Brasil talvez seja um raro exemplo de país em que a ditadura é feita pelos que não ganharam a eleição”.
fonte Revista Oeste